segunda-feira, 18 de agosto de 2008

NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO

NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO

Há cento e oitenta anos, Nossa Senhora d’Apresentação procurou sua freguesia, numa quarta-feira, 21 de novembro de 1753.
Era nosso Capitão-Mor, Pedro d’Albuquerque Melo. Governava a todos , dom Luiz Pedro Peregrino de Carvalho e Menezes de Ataíde, décimo Conde de Atouguia e sexto Vice Rei do Brasil.
Natal podia ter cincoenta casas de taipa, cercadas de mato. A Ribeira era um pântano onde dormiam as sombras cinzentas dos coqueirais. Árvores de vulto as ruas que hoje correm para o sul e leste. Não estavam construídas as igrejas de Santo Antônio nem a do Senhor Bom Jesus das Dores. Alecrim, Tirol, Petrópolis estavam cobertos de matas, de litoral, capoeiras ralas, com frutas silvestres, povoadas de cotias, pacas e veados. A Casa do Governo era na Rua Grande (praça André de Albuquerque). Reinava em Portugal El Rei Dom José. O nosso vigário era o Padre doutor Manoel Correia Gomes que faleceria sete anos depois, a 4 de agosto de 1760.
Toda a cidade se apresentava entre a avenida Junqueira Aires e proximidades do Baldo. Talvez não tivéssemos trezentos moradores.
Nessa época, numa manhã, foi visto encalhado numa pedra, que as marés respeitam, um caixão. Trazido para praia, aberto numa curiosidade de terra menina, encontraram uma imagem duma Nossa Senhora. Pequena e simples, o manto cobrindo-lhe a cabeça na convenção ritual para a cercadura da coroa simbólica, a Santa sustinha o Deus Menino na curva do braço esquerdo e estendia a destra, dedos unidos e vazios, um gesto de suspender o rosário ou de abençoar, timidamente.
A pedra ficou chamada Pedra do Rosário. Fora o primeiro porto que a Mãe de Deus deparara em sua jornada matéria pelo Atlântico. Na linha da Igreja do Rosário, a Pedra era visitada, mostrada com um vestígio da milagrosa aparição. Hoje, reduzida, deformada, serve apenas de suporte a um cano que conduz óleo para os aviões da Air France. A penha onde dom Fuas Roupinho foi salvo, é, em Portugal, local de romaria. Em Natal, a Pedra do Rosário, quase identificável em sua humilhação, e um mero suporte a um conduto de essências.
Padre, povo, numa aclamação que outrora era lógica, inesperada e irresistível, levara a imagem à Matriz. Lavraram uma ata, narrando o sucesso, com assinaturas autênticas. Ainda esse documento foi visto por João Nepomuceno Seabra de Melo e Alfredo Antonio Pereira do Lago. Depois desapareceu.
Natal já era freguesia de Nossa Senhora d’Apresentação quando o vulto aportou numa manhã de verão tropical. Já em 1656 sabemos, sem discussão que a Padroeira possuía idêntica evolução religiosa.
Devia, pois, existir um outro vulto da Padroeira. A vinda por mar e vento, a origem misteriosa, conduzida ao sabor do acaso, num rumo que a Fé se inclina a dizer providencial, haloaram a Imagem na moldura radiosa de uma tradição popular.
É uma mostra legítima de uma escultura portuguesa. Visíveis os traços imutáveis dos velhos santeiros de Braga, no modelado do pescoço, no nariz afilado, à grega, obedecendo o padrão de beleza, nas faces, na boca, nos olhos pequenos e negros, impostos proximamente, dando a impressão vaga e natural de infantilidade e asiatismo. A cabecinha do Menino-Jesus ainda mais viva demonstrara a ancianidade lusitana do trabalho. No rebordo do caixão, estreita tira afirmava, em letras que a memória coletiva não esqueceu: “No ponto onde der esse caixão, não haverá perigo”.
Do alto do seu altar, a Santa do Rosário, apresentada a 21 de novembro, vê passar os anos e as vidas confiadas à sua misericórdia. Guerras, campanhas, sofrimentos, loucuras, ódios, voam como turbilhões de poeira, sem rastro para a eternidade. Cada ano, no aniversário, acende-se no Céu escuro de novembro com as alegrias luminosas dos fogos queimados em sua honra. Uma multidão se adensa, numa oferenda que os tempos mudam de forma mas conservam a intensão pura. Pequenina e serena, vinda do Mar numa hora de Sol, a Padroeira olha a Cidade que ela própria escolheu para residência perpétua, há cento e oitenta e seis anos. E a cidade se alegra e multiplica, descendo e subindo os morros, abraçando os taboleiros nos vinte braços do casario ininterrupto. E o olhar da Padroeira maior se torna, acompanhando a vida social do rebanho que Ela apascenta, para entregar depois, alma por alma, às mãos divina do Filho.

Luís da Câmara Cascudo, 22-11-1939

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